quarta-feira, 31 de outubro de 2007


Quem será o próximo bode expiatório ?


Muitos dos que me conhecem talvez já deduzissem de antemão qual seria a temática do texto dessa semana, afinal de contas, vocês também devem ter acompanhado em tom de indignação as matérias que foram veiculadas pelos programas Domingo Espetacular (Record) e Fantástico (Globo) neste domingo (28/10/2007). As respectivas versavam sobre a “cultura punk”, para ser mais específico, sobre a violência disseminada por aqueles que partilham dos ideais desse movimento. Como alguns devem ter podido acompanhar, a proposta era apenas uma: mostrar que as atitudes violentas empreendidas por esses jovens eram produzidas por uma espécie de “má influência” advinda do próprio punk enquanto estilo de vida. Não é nenhuma novidade afirmar que ambas eram de uma pobreza documental sem tamanho, por isso, prefiro pular essa parte. Acho mais interessante discutir a maneira como a problemática da violência e sua relação com a juventude foi trabalhada. Ao invés de abordar a violência como um fenômeno de extrema complexidade que envolve elementos econômicos, políticos, culturais e psíquicos, e que atinge toda a juventude brasileira (e do mundo todo), apresentaram a mesma como uma particularidade de determinados grupos ou melhor de um grupo em específico, reconhecidamente estigmatizado desde sua aparição no país, no início dos anos 80. Em tempos de crise, sempre procura-se um “bode expiatório”, ele funciona como uma espécie de catalisador de todas as mazelas cotidianas, e a bola da vez é o movimento punk. Não lembro de ter visto nos últimos anos, alguma matéria “positivando” as ações desse grupo, se referindo a maneira como questionam os valores dominantes da sociedade: machismo, homofobia, sexísmo, racismo, etc, o que confirma a máxima de que “punk só pode ser noticia quando está na página policial”. A chamada de uma das matérias trazia a seguinte frase: “por que cultuam a violência?”, quando a pergunta deveria ser: “por que a violência é uma constante entre todos os grupos que portam consigo verdades pré-estabelecidas?”. Aí partiríamos de um outro viés, pois passaríamos a analisar o aniquilamento físico e simbólico do outro como uma forma de garantir a coesão grupal, pois como dissera o sociólogo Norbert Elias (2000), “o grupo reforça seus ideais através da negação dos ideais do grupo ao qual se opõe”. A situação se complica, quando a violência não é mais cometida entre bandos rivais, no caso “punks x skins”, disputa que se arrasta por décadas, e sim, passa a ter como alvos pessoas comuns, que não possuem ligação com qualquer postura político-ideológica, como foi o caso do garçom morto por três jovens definidos como “punks” a algumas semanas. Então, essa ação criminosa já não pode ser considerada um produto ideológico-cultural-simbólico (usem a expressão que considerarem mais adequada) de um movimento em específico, a não ser que a vítima em questão fizesse parte de um grupo rival, o que não era o caso. A violência cometida pelos três jovens é a mesma que se faz presente no nosso cotidiano, e não é um atributo específico de um segmento da população, pois ela está capilarizada por todo tecido social, e se projeta das mais diversas formas. Sem querer explicar o fenômeno, até porque seria impossível, só podemos indicar que ela é o “fio condutor maldito” que une a sociedade, e torna todos “frutos de uma mesma árvore”. Alguns de vocês acham que existem realmente diferenças entre a violência cometida pelos jovens de classe média que espancaram a doméstica Sirley, e aquela cometida pelos jovens “punks” que assassinaram o garçom? Eu particularmente acredito que existem. A diferença estar na pele, na condição sócio-econômica, no visual provocador...e é justamente nessas diferenças que residem o “xis” da questão. São nessas significações sociais como mostra Castoriadis (1982), que se escondem ou melhor, se apresentam um apartheid cruel. Quem não se lembra da morte do garotinho João Hélio? Na ocasião houve uma comoção generalizada da população com milhares de pessoas indo as ruas para protestar contra a violência e a impunidade no país. Nas favelas brasileiras, crianças como João Hélio, são assassinadas freqüentemente, porém a revolta se limita a circunferência da favela. Por que será que a população não se indigna indo também as ruas? Por que algumas mortes se tornam estatística e outras são sentidas de forma intensa? A diferença está na in-diferença pela qual tratamos o diferente. Parece confuso, mas não é difícil compreender. Existem pessoas que estão autorizadas a morrer, e outras não. Então vocês me perguntam: Mas como assim? Quem define os parâmetros? E eu respondo: a sociedade e suas convenções, ou seja nós mesmos... parece absurdo, mas é assim que procede. Nós tendemos a nos sensibilizar com sofrimento daqueles que são próximos, e ser indiferentes com aqueles que estão distante de nós sobre vários aspectos. Claro que isso não é condicionado racionalmente, digamos que é uma elaboração de nosso imaginário instituinte (parafraseando Castoriadis novamente). Alguns dizem, que a “dificuldade de amar o próximo” é uma condição originária do homem, outros dizem que ela é constructo social, e jamais chegamos ao um consenso. O que sabemos é que ela nos acompanha desde a mais tenra idade. Fiz todo esse percurso para mostrar que a violência, aquela mesma que os programas da Globo e da Record, disseram ser produzida por um grupo carregado de idiossincrasias, se faz presente em toda a humanidade. Imputar ao movimento punk o estigma de violento é apenas uma maneira superficial de enxergar o problema.

CASTORIADIS, Cornélius. A instituição imaginária da sociedade. SP: Paz & Terra, 1982.


ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. RJ: Jorge Zahar, 2000.

terça-feira, 23 de outubro de 2007


Sobre o tal "bonde do Foucault"


Um artigo escrito pelo jornalista e colunista da Revista Veja Reinaldo Azevedo a algumas semanas atrás, chamou bastante minha atenção. Trata-se de um texto comentando os supostos ataques de alguns intelectuais ao filme “Tropa de Elite”, de José Padilha, que vem sendo acusado, creio que injustamente, de “fascista”. Sem querer entrar nos pormenores dos comentários de alguns intelectuais do país, vale ressaltar, que, muita das críticas feitas ao filme de Padilha, deveu-se a forma como a violência policial foi discutida em tal produção. Ao trazer para a tela do cinema as ações do BOPE, destacando a “eficiência” e “prontidão” com as quais executam suas missões sangrentas, o diretor ajudou a reforçar a idéia de que a única solução para o problema da violência é a “guerra pura”. Diante de uma Policia Militar corrupta e covarde, e de leis ineficazes, eis que surgem aqueles que serão responsáveis pela restauração da ordem que fora perdida: os anjos vingadores do BOPE. Certamente Padilha não tinha esse propósito, mas o que seria uma critica à violência policial, acabou provocando o efeito inverso, e agora vemos crianças pedindo para as suas mães uniformes semelhantes ao do batalhão. Bem vindo ao espetáculo da perversão nacional. Mas isso seria tema de uma outra discussão. Por enquanto meu interesse está no artigo de Reinaldo Azevedo que possui o intrigante título “Capitão Nascimento bate no bonde do Foucault”. Como sei que não vale a pena escrever uma réplica ao autor dessa baboseira sem tamanho, escrevo no blog para extravasar minha indignação perante a mediocridade de um setor imbecilizado da imprensa brasileira, que é bem maior do que imaginamos. No respectivo texto, o dito cujo teve a brilhante idéia de aproximar Immanuel Kant (Filósofo alemão iluminista do século XVIII) e o Capitão Nascimento (Personagem interpretado por Wagner Moura em Tropa de Elite). É tosco, mas é verdade. Para ele, o famoso Capitão se apresenta na pele de um “kantiano rústico” que está a procura de uma moral universalizaste, e que, ao contrário dos “intelectuais de esquerda” (como se todos os intelectuais que criticaram o filme fossem de esquerda...ridículo), não sofre de psicose dialética. Tropa de Elite apresenta o problema e a solução. Simples não? Mas pior do que essa comparação estapafúrdia, é o argumento que ele utiliza para indicar a verdadeira razão da inquietação dos intelectuais com o filme. Para o jornalista, eles sentiram-se ofendidos com a constatação de que o tráfico - assim como a violência decorrente do mesmo - é financiado pelos estudantes de classe média que infestam as universidades do pais, e que não abrem mão de seu “baseadinho sagrado”. Definitivamente não dar para levar a sério um sujeito como esse! Ele só pode ter complexo de inferioridade...talvez não conseguiu ser aprovado no curso de Filosofia e acabou tendo que optar por Jornalismo, ou então, sua namorada o trocou por um filósofo ou sociólogo, ou quem sabe seu pai foi um grande sociólogo? Será isso um parricídio? Seja qual for o motivo, seu argumento não deixará de ser leviano, perverso e reacionário. Reduzir um conjunto de críticas sérias a uma espécie de “estratégia de defesa”, do tipo, “temos que tirar o nosso da reta” é um atentado ao conhecimento produzido dentro das universidades do país. É jogar pelo ralo anos de estudo e de produção acadêmica sobre o fenômeno da violência. Mas Reinaldo não dá a mínima para esse tipo de conhecimento, para ele é bobagem...afinal de contas, de que adianta ficar divagando sobre teorias surreais quando precisamos de uma solução urgente e rápida? Para quê Foucault se temos o Capitão Nascimento? E por falar em Foucault, não podia deixar de destacar a total ignorância sobre a obra do filósofo francês, que, diga-se de passagem é chamada de “lixo” pelo nosso grande pensador da Veja. Ele chega ao ponto de afirmar que no livro Vigiar e Punir (1972), Foucault tem como propósito criticar os métodos coercitivos implementados pelo Estado para coibir a ação do transgressores da lei. E o que é mais grave, afirma que no respectivo livro, o filósofo sugere que os castigos físicos são melhores ou menos cruéis do que o disciplinamento dos corpos pela instituição prisional. Foucault deve estar até agora se contorcendo no caixão. Dentre os inúmeros absurdos, o que considero mais perigoso é o apoio desmesurado a barbárie como solução para o problema da violência, que é extremamente complexo. Isso sim é fascismo, aquele que Foucault define no prefácio de Anti-édipo de Deleuze e Guattari (1977), e que precisa ser combatido a todo custo: “o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”.
Poderia escrever inúmeras páginas sobre esse atentado ao bom senso e a reflexão, mas acho que por enquanto estar de bom tamanho. Para concluir, gostaria apenas de dizer que, ao contrário do que nosso imbecilizado jornalista pensa, o "bonde do Foucault" continua firme e forte, pronto para novos desafios. Os cães ladram e a caravana passa...