segunda-feira, 14 de julho de 2008


Animal, demasiadamente animal...

Existem livros que mudam completamente nossa relação com o mundo. Textos que nos deixam marcas profundas no ser (aqui, sem nenhuma conotação metafísica), e que nos leva a pensar sobre determinadas questões que cotidianamente passam desapercebidas. Para provocar uma ebulição em nossas entranhas (faço questão de usar “entranhas” para demarcar o lugar da animalidade em nossa vida) não é preciso mais que 100 páginas. É claro que não estou querendo desmerecer os clássicos de Tolstoi, Dostoievsk, Guimarães Rosa, Proust, e inúmeros outros, que possuem algumas centenas de páginas. O que pretendo explicitar, é que não são os números de páginas que definem uma grande obra, mas sim, a força com que as palavras chegam até nós. Acabei de ler um livro com menos de 100 páginas do filósofo argelino/francês Jacques Derrida, e posso dizer sem pestanejar, que foi uma das experiências mais incríveis que tive nos últimos meses, para não dizer anos.
Já conhecia outros textos do filósofo, que se tornou mundialmente reconhecido pela crítica à Jacques Lacan e a sua idéia de centralidade da estrutura (todo significado precede de um significante central). Sempre fui admirador de Derrida e de seu pensamento desconstrucionista, mas até então nunca tinha me aventurado a ler um livro inteiro desse autor. Ficava adiando, esperando o momento ideal, até que um belo dia, em belo horizonte (gostaram do trocadilho), quando participava de um evento nesta cidade, me deparei com um pequeno livro intitulado “O animal que logo sou”. Me apaixonei pelo título imediatamente. Lembrei que o autor algumas vezes escrevera sobre a relação dos seres humanos e não-humanos, mostrando que existia um principio ordenador da realidade que traçava uma hierarquia entre essas duas formas de vida. Deduzi que o livro abordava o tema da alteridade, da dificuldade de se reconhecer na figura do animal não-humano. Suposição que mais tarde veio se confirmar durante a leitura do livro. Derrida falava realmente da relação entre humanos e não-humanos, tecendo criticas contundentes a arbitrariedade do sistema de classificação lingüístico.
O que mais me chamou atenção, foi a maneira como o filósofo foi afetado e incitado a escrever esse texto. Num dia comum, ao sair do banho, ainda nu, Derrida se deparou com o olhar fixo de seu gato de estimação. Foi a partir desse olhar, ou melhor de uma troca de olhares, já que se trata de uma relação, que ele se viu indagado - e incomodado - a pensar sobre as idéias de “animalidade” e “ser vivente”, temas centrais da discussão proposta. Idéias que também já foram trabalhadas por outros filósofos como Heidegger e Lévinas, duas das maiores influências do filósofo francês.


Mal estar de um animal nu diante de um outro animal, assim, pode-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável desse mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extralúcido. É como se eu tivesse vergonha, então nu, diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha. (Derrida, 2002:16).


Neste momento, o filósofo se viu impelido, a ter que questionar, a sua vergonha, a sua nudez, a sua humanidade. Sentimentos que o afastavam do animal que estava diante do seus olhos, e da animalidade que se encontrava adormecida, esquecida no seu próprio recôndito, e que agora se revelava em toda sua grandeza por intermédio de uma experiência sensível. Do ponto de vista da experiência e dos afetos, o que existia naquele momento eram apenas dois animais nus, ou melhor, um animal, o próprio Derrida, já que o bichano não possui o sentimento de sua nudez. E foi nessa troca de afetos, potencializada pela sensação de encontrar-se nu diante de outro animal nu, que o filósofo passou a questionar sua condição de ser vivente. Quem sou eu, se animal é tudo que somos?


Quem sou eu então? E quem é este que eu sou? A quem perguntar senão ao outro, E talvez ao próprio gato? (pg. 18).


DERRIDA, Jacques. O Anima que logo sou. São Paulo: UNESP, 2002.

2 comentários:

rodrigo sérvulo disse...

talvez ossos. mas seria difícil dizer o que somos - o que somos estrapola qualquer dito sobre nós.

CotiCAFEdiano disse...

Talvez sejamos animais enquanto estivermos nus. qualquer homem nu na Av.Paulista seria tratado como um animal.

:)