segunda-feira, 11 de agosto de 2008



Corpo marcado, ordem restituída


Grande segmento da população acredita que a maneira mais adequada de coibir a ação dos “transgressores da lei” e minimizar a violência urbana, é reprimindo da forma mais agressiva possível esses indivíduos, pois segundo os mesmos, a lei é “muito generosa com os criminosos”. Os representantes do Estado, pressionados pela opinião pública, acabam também agindo “emocionalmente” e em conformidade com o discurso apelativo de uma população assustada, confundindo por sua vez o papel de cidadão com o de autoridade. Hannah Arendt (1994) nos mostrou que o aumento da ineficiência da polícia está acompanhada do aumento da brutalidade policial, e ao que tudo indica, o uso da força/ violência legítima nas sociedades contemporâneas tem se revelado meio insuficiente e ineficaz para combater a violência urbana. Tentar extirpar o mal da sociedade a todo custo através da imputação de castigos dos mais diversos não é algo comum apenas a sociedades específicas, está presente em todas as culturas, como elemento fundador, que organiza e dar sentido a vida social dos indivíduos. Quando me refiro a uma violência fundadora, não estou querendo reproduzir a idéia de uma estrutura inconsciente como afirmariam os estruturalistas, ou mesmo como um instinto que produziria “indivíduos maus por natureza”, falo de algo presente na gênese das sociedades, como disposições corporificadas, internalizadas, e que constituem por sua vez, o habitus (para usar um conceito do sociólogo Pierre Bourdieu) desses indivíduos, através da assimilação de uma cultura da violência. A punição, que se constitui como a imputação de castigos físicos sobre o corpo e que tem como objetivo a restituição de uma ordem que fora perdida aparece como prática legítima em nossa sociedade, herança deixada de pai para filho, reproduzida através das instituições socializadoras. Aprendemos à custa de uma “pedagogia do medo” que a melhor maneira de educar nossos filhos é dando-lhes palmadas, fazendo com que os mesmos reconheçam desde cedo que o respeito e os “bons costumes” são adquiridos através de intervenções sobre o corpo. Segundo Caldeira (2000) “A marcação sobre o corpo pela dor é percebida como uma afirmação mais poderosa do que aquela que meras palavras poderiam fazer e deveria ser usada especialmente quando a linguagem e os argumentos racionais não são entendidos”.
Em nossas escolas, por muitas décadas, foi comum o uso da palmatória como instrumento de correção para alunos tidos como “indisciplinados”. Lembro das histórias contadas por meu pai que relembra com um certo saudosismo da época em que a tabuada era apreendida através da dor e sob o consentimento dos progenitores, que concordavam com tal atitude. Como podemos perceber, não nos admira que em nossa sociedade, indivíduos concordem com práticas punitivas, classificando-as como necessárias e ideais ao controle da violência. Nas delegacias e presídios de todo o país continuam a se repetir as mesmas cenas de um passado não muito distante, e que muitos brasileiros ainda trazem marcado em seus corpos.
A “violência policial” já não é mais entendida como procedimentos repressivos legais que garantiam por sua vez a segurança e tranqüilidade dos cidadãos, cada vez mais ela se configura como um conjunto de práticas ilegais cometidas por indivíduos que utilizam sua farda para impor regras de conduta de maneira despótica. Existem inúmeras pessoas em nosso país que não conseguem distinguir “controle de violência” e “abuso de violência”, o que acaba colaborando para a intensificação dessas práticas ilegais. Muitas vêem esse modo de agir da polícia como procedimento legal, que faz parte do “trabalho da policia”, com isso, espancamentos e outras diversas formas de violência deixam de ser denunciadas.


ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/ Edusp.

Nenhum comentário: