quinta-feira, 4 de setembro de 2008


Algumas proposições sobre o devir-alcoólatra


Em sua famosa entrevista concedida a Claire Parnet que ficou conhecida como ABCedário, Gilles Deleuze versa sobre os mais diferentes temas: da animalidade ao desejo, da infância ao cinema, da familia à amizade, com a serenidade que é peculiar a todos àqueles que fazem da filosofia um exercício cotidiano. Dentre as muitas letras do alfabeto, escolhi a letra “B” para ser o fio condutor desse minha nova reflexão inacabada, pois é nesse momento da entrevista que o filósofo fala de sua relação com a “B”ebida. Todos aqueles que conhecem um pouco da história de Deleuze, sabem de sua relação com o álcool, e de como essa mesma substância quase o impediu de fazer aquilo que mais gostava: pensar. O que estimulava a produção de conceitos em um outro momento acabou se convertendo em um mecanismo inibidor. O alcoólatra, diz Deleuze, "nunca para de beber, nunca para de chegar a última bebida", a última bebida nesse sentido, é o último copo que seu corpo consegue suportar. Antes que alguém pense que os comentários do filósofo acerca da bebida tem uma ponta de ressentimento devido a condição de abstêmio que desfrutava na época, afirmo que Deleuze jamais agiria dessa maneira. O que o autor expôs em sua fala é que existem formas diferenciadas de se relacionar com o álcool, e que ele só pode ser considerado um potencializador da criatividade quando “ajuda a perceber que existe algo demasiadamente forte na vida”, citando como exemplo, a relação que alguns escritores mantinham com a bebida, entre eles, Thomas Wolfe, Fitzgerald, Henry Miller, entre outros. Deleuze sempre foi um grande admirador dos escritores anglo saxões, e nunca escondeu que preferia estes aos franceses, talvez pelo fato deles serem estrangeiros na sua própria língua. Para além da admiração pelos textos, existia uma admiração pela vida que estes escritores imprimiam no papel, uma vida que não era ficção, mas expressão de múltiplos devires: devir-minoritário, devir-mulher, devir-alcoólatra.
Ao mesmo tempo que o filósofo comenta sobre a produção de um corpo sem órgãos resultante da relação homem/álcool, percebe-se uma certa cautela em sua fala, como se este devir-alcoólatra tivesse um limite. Não que Deleuze estivesse reproduzindo o slogan “beba com moderação”, longe disso. A idéia era justamente mostrar que a linha de fuga produzida no ato de embriaguês pode se converter em linha dura, molar, levando ao desejo de morte. Penso que existe uma enorme confusão em relação a algumas práticas tidas como liberadoras, mas que na verdade fazem o sentido inverso. Já se tornou lugar comum entre alguns intelectuais e artistas falarem das drogas com um certo “algo a mais entre os dentes”, podemos citar os escritos de Baudalaire, Castañeda, e até mesmo do próprio Nietzsche. Não que esses autores façam apologia ou glamourizem o consumo de certas substâncias. O problema é a “lenga-lenga” de alguns que se utilizam de certos argumentos chavões pseudo-filosóficos para afirmar que é preciso “beber todas” para elevar as idéias. E o que dizer da embriaguês transloucada de Charles Bukowski e as viagens surreais de Jack Kerouac produzidas pela ingestão de peyote? Aqui já fiz menção a outras substâncias “entorpecentes”, o que não muda o foco da discussão, uma vez que a idéia é sair do estado de sobriedade. Para além de um moralismo gorduroso que impregna o discurso dos policiais do desejo, as questões que trago para pensarmos é: em quais circunstâncias é possível devir-alcoólatra? Todos devém ou trata-se de um privilégio de poucos? E o seu Joaquim, que bebe umas e outras e depois chega em casa quebrando tudo? Quando o álcool supõe captura? Não tenho respostas para essas questões...um bom vinho para refletir um pouco...talvez.

2 comentários:

rodrigo sérvulo disse...

quando o alcóol torna-se um estrato? nada melhor que deleuze, no como produzir um CsO, dizer: "você agiu com a prudência necessária?"

muito bom o texto!, muito bom!

Monstre Charmant disse...

Gostei, realmente bom!
De fato, não é difícil perceber um desejo de auto-destruição que acompanha a embriaguez.