quarta-feira, 24 de junho de 2009


O melhor da amizade está fora de nós...

Quando me foi incumbida a missão de escrever um texto sobre amizade, fiquei bastante feliz e ao mesmo tempo preocupado. Feliz porque teria a oportunidade de escrever sobre um tema que povoa o imaginário de poetas, escritores e filósofos, e preocupado com o fato de que não sendo poeta,  escritor, e muito menos filósofo, acabasse escrevendo alguma bobagem. Talvez muitos discordem dessa afirmação, indicando que não existe nenhuma dificuldade em escrever sobre o respectivo tema, e que para isso basta apenas deixar a escrita ser atravessada pelos mesmos afectos que se fazem presentes nessa relação. Afinal de contas, quem não possui amigos? Concordo que ninguém precisa de uma autorização ou um conhecimento prévio para discorrer sobre amizade, mas sempre que me lembro daqueles que se dedicaram a escrever sobre esse tema, sejam os pensadores da Grécia antiga ou pensadores franceses contemporâneos, é impossível não sentir um certo receio. Mas deve ser paranóia de pesquisador. Queremos sempre analisar tudo, e nesse movimento acabamos esquecendo que a vida também é mistério, e que a beleza dela reside justamente em convivermos bem com o inexplicável. Como bem afirmou John Lennon: “Vida é aquilo que acontece quando pensamos o que fazer com ela...”. Não tem nada de místico ou sobrenatural nessa afirmação, a questão é puramente “fenomenológica” ou “fenomênica”, como queiram. Pensar a amizade como uma experiência singular arrebatadora cujas formas variam de acordo com as intensidades e afecções que atravessam as diferentes relações.

Apesar de nossa época ser caracterizada pela “fluidez” do laços sociais como bem afirmou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, entendo que a amizade enquanto potência de vida, paixão alegre, continua resistindo às investidas dos microfascismos que vieram a reboque com a “capitalização” do mundo da vida. Anuncia-se aos quatro cantos do mundo que a expansão das novas tecnologias comunicacionais está dissolvendo os relacionamentos face-a-face, oferecendo em troca uma comunicação fria, “deslibidinada”: café sem cafeína, cerveja sem álcool, realidade sem real. O  produto desse fenômeno, dizem alguns especialistas, são homens e mulheres que não mais se prendem a relacionamentos a longo prazo. Não sou tão apocalíptico a ponto de acreditar que os seres humanos se tornaram reféns de uma máquina, ou melhor de uma tecnologia específica, e que agora os espaços de sociabilidade off line estarão com seus dias contados. Apesar de reconhecer que a expansão da internet reconfigurou de maneira decisiva as noções de tempo e espaço, promovendo uma transformação significativa dos nossos mapas subjetivos, penso que o desejo de estar-junto continua (e continuará) se expressando por todo o sempre. Como afirmou um conhecido filósofo francês “toda captura supõe uma dupla captura”, o que significa dizer que uma captura nunca é definitiva. A internet captura nosso desejo de estar junto, mas também é capturada por ele, e nesse movimento libera uma linha de fuga criativa subvertendo uma lógica que até então era apresentada como totalizante.

Se concordarmos com o pessimismo de alguns filósofos e sociólogos, podemos dizer que a experiência da amizade, que também é um laço social, está com os seus dias contados. Ao meu ver, mais importante do que comentar sobre a destruição de um modelo exclusivo de “sociabilidade”, é mostrar como essas transformações proporcionaram o surgimento de novos laços. Mas não quero que o texto se torne uma espécie de análise socioantropológica sobre a produção dos vínculos afetivos em nossos dias, pois como já afirmei, a experiência da amizade não pode (não deve) simplesmente ser reduzida a uma argumentação dessa natureza. Existem coisas que estão no plano do indizível, o que o poeta Olavo Bilac descreve de forma encantadora como “estados de alma”, aqui sem nenhuma conotação metafísica. Os “estados de alma” de Bilac são os momentos singulares vivenciados na (pela) experiência, o ser afectado.

Penso que a experiência da amizade é um desses estados, que não pode ser descrito, apenas vivenciado em devir. Devir-minoritário, devir-amigo, devir-eu-de-você, devir-você-de-mim. Quando afirmo que existem coisas que estão no plano do indizível, não estou me referindo a uma emoção interior que vem de um local desconhecido, o real não simbolizado da psicanálise, mas de algo que vem de fora com uma força tão grande que extrapola os sentidos de nossa pobre linguagem oral, e nessa hora é fundamental saber gaguejar em nossa própria lingua... ou, nesse caso, gaguejar em nossa própria escrita, fazer dela um deserto povoado. Esse texto não é uma produção minha, nem poderia, pois enquanto escrevia me deixei atravessar pelos sorrisos, apertos de mão, abraços, beijos, de todo(a)s aquele(a)s pessoas que estão comigo a todos os instantes, pois como já dissera o grande Marcel Proust: “o melhor da memória está fora de nós. Está num ar de chuva, num cheiro a quarto fechado, ou no de um primeiro fogaréu, seja onde for que de nós mesmos encontremos aquilo que a nossa inteligência pusera de parte, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando se esgotam todas as outras, sabe ainda fazer-nos chorar”.

Parodiando Proust devo afirmar que “o melhor da amizade também está fora de nós”, está no outro (outrem), está em mim e você.

 * Texto publicado na Revista Bula 8 - Abril de 2009

 

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