quinta-feira, 29 de novembro de 2007


A insustentável leveza do não-ser


Confesso, o título não é nenhum pouco original, foi uma “enrabada” no melhor sentido deleuziano de uma expressão de Milan Kundera. Acredito que todos vocês devem conhecer o livro “A insustentável leveza do ser” não é mesmo? E daí? Quem se importa com isso? Além do mais, não se trata de um plágio descarado, digamos que é uma homenagem póstuma, mesmo achando esse livro de Kundera demasiadamente chato...Mas não vim aqui para falar sobre literatura strictu sensu, o que não seria má idéia, diga-se de passagem, contudo, prefiro me debruçar sobre outra coisa, algo que me incomoda profundamente, não só a mim claro, pois se trata de uma questão existencial, falo do não-ser. Prometo não ficar torrando a paciência de vocês com uma elaboração recheada de expressões filosóficas de difícil tradução, como fazem os iniciados quando vão discorrer sobre questões de grande complexidade. Bom, sempre ouvi de várias pessoas, (e acho que muitos de vocês também já ouviram), a idéia de que o ser humano tem uma essência, que só é descoberta a posteriori, quando nos livramos da máscara que apresenta uma visão falseada daquilo que somos de verdade. Atualmente a idéia de “ser”, ou melhor, de essência vem sendo questionada por aqueles que pensam o ser humano como uma potência em constante transformação, rompendo com a idéia de que somos um construto biológico, ou meramente racional. Droga! Já estou falando de filosofia, mesmo dizendo que não faria...peço desculpas pelo meu curto lapso de memória, é o costume...mas como ia dizendo, várias pessoas tendem a achar que as “máscaras” são próteses identitárias a qual nos agarramos para esconder algo. Por outro lado, existem aqueles que se sentem felizes com essa condição, dizendo até que as máscaras traduzem aquilo que são realmente. Intrigante não? O que sabemos é que a todo instante estamos a procura daquela máscara que melhor nos servirá. Cotidianamente estamos querendo “ser” algo, pertencer a algo, só para ter o prazer de dizer para alguém que possuímos uma identidade, do tipo: sou militante de esquerda, ou então sou punk, ou sou vegetariano, ou sei lá...qualquer outra coisa. Por outro lado, existe um outro movimento (no sentido de direção), cuja a orientação é pautada pelo “não-ser”. Todos vocês devem ter um amigo “ex-alguma coisa”: ex-rockeiro, ex-anarquista, ex-católico, enfim...”ex-qualquer coisa”. Quando muitos deles são indagados sobre o “por que” da negação de algo que em outro momento foi tão importante, costumam dizer: “não agüentei a pressão”, “ela me privava de determinadas coisas”, “não quero seguir regras”, muitas são as frases. Dessa forma, passam a criticar ferozmente seu antigo papel, usando toda a força para destruir o pai castrador, a autoridade, a lei que fazia de suas vidas um verdadeiro inferno. Sem perceber, acabam aderindo um novo papel, cuja a identidade é construída na depreciação da identidade antiga. O “não-ser” acaba se tornando ser..e tudo volta a “ser” como era antes. Não conseguimos viver sem uma classificação, mesmo que ela nos traga sofrimento, pois é menos doloroso sofrer pelo pertencimento do que pelo não pertencimento. Carregar o peso de uma identidade é uma enorme responsabilidade, por isso há aqueles que mesmo em conflito consigo mesmo, preferem continuar vivendo da maneira que consideram mais adequada, evitando a fogueira da inquisição e os olhares de desconfiança. A maior dificuldade não está em romper com o antigo papel, e sim em não assumir um outro. A prova maior é que muitos dos que são “ex-alguma coisa” procuram sempre um novo rótulo o mais rápido possível, assumindo uma nova conduta, que em muitos casos é tão disciplinadora quanto a primeira...
O ser humano é um bicho complicado mesmo, nunca está satisfeito com nada, quando está livre, reclama segurança, quando está seguro, reclama liberdade...
Vai entender...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007


Reflexões sobre o racismo no Brasil


A todo momento somos interpelados pela questão: “existe racismo no Brasil”? A idéia de uma nação miscigenada na qual as etnias convivem harmoniosamente é o argumento mais utilizado por aqueles que relutam em acreditar que o Brasil é um país verdadeiramente democrático. Também queria muito poder acreditar nessa afirmação, porém o cotidiano a todo instante me faz entender de maneira cruel que as coisas não são tão belas quanto imaginamos. Mesmo levando em consideração o fato de que a escravidão foi abolida no país a mais de um século, e que muitos negros estão ocupando “posições sociais” que até então eram privilégios de brancos, não podemos deixar de notar que o preconceito racial a cada dia dá provas de sua força. Diferente do apartheid norte-americano, onde brancos e negros eram segregados em mundos distintos, o nosso é caracterizado pelo silêncio. Ninguém é racista até última instância...somente em casos especiais, como por exemplo, quando uma garota branca (nem tão branca assim) insiste em namorar um garoto negro, ou vice-versa. Os pais ficam aflitos, não conseguem entender o que a filhinha, (ou o filhinho) deles viu em um rapaz (ou uma moça) com essas características, então, tentam persuadir-la (o) a desistir do relacionamento que de acordo com eles, não pode dar certo. Porém, o que chama atenção nesses casos, é que em muitos deles, a palavra racismo não é mencionada. Os indivíduos não se reconhecem enquanto racistas, e dessa maneira vão tocando o cotidiano, afinal de contas não é possível serem acusados de algo que inexiste por aqui, não é mesmo?
Interessante é que a população só se indigna com esses casos quando os mesmos ganham repercussão na mídia de uma maneira geral. Lembro das reações de alguns jornalistas diante do caso que envolvia a mãe de um jogador de futebol famoso, que foi “convidada” pelo recepcionista de um hotel a ingressar pelo elevador de serviço, utilizado pelos empregados pelo fato de ser negra. Logo, a população se mostrou revoltada com a atitude do recepcionista, que não fez nada mais que reproduzir uma prática que certamente estava dentro das normas do hotel, e mais ainda, introjetada nos esquemas representacionais de muitos ditos “cidadãos de bens” da sociedade brasileira. E por falar em futebol, é dentro das famosas “quatro linhas” que acontecem muitos dos casos de racismo do país. Quem não lembra dos inúmeros casos de jogadores negros que foram cuspidos ou chamados de “macacos” por seus colegas de profissão? Como podemos perceber o racismo por aqui é bem mais comum do que imaginamos, mas mesmo assim, insistimos nessa “lenga-lenga” verborrágica de que isso é problema de outros países, como aqueles da Europa, onde é comum encontrar facções de extrema direita que pregam ódio aos negros e aos chamados mestiços. Lamento informar, mas no Brasil existem também grupos que pregam ódio racial, e a cada dia crescem o número de adeptos. No inicio do ano em Brasília houve um atentado a uma residência estudantil na UNB onde viviam estudantes africanos. Como se não bastassem as pichações com dizeres odiosos nas portas dos apartamentos, atearam fogo no prédio. Lembro de ter ouvido comentários que diziam que alguns estudantes estavam indignados com certos privilégios concedidos aos africanos, como se de alguma forma isso apaziguasse o caráter racista do atentado. Parece que a Universidade de Brasília convive bem com essa situação, quem não lembra o caso do professor de Ciências Políticas que foi punido por se referir aos negros como “crioulada”. Diferente do que podemos imaginar, esses casos não são cometidos por indivíduos de maneira isolada, como por maldade, ou por falta de amor ao próximo. Trata-se de uma particularidade da cultura brasileira que tem suas raízes fincadas sobre uma velha estrutura definida pelo par “casa-grande e senzala”. Tinha planejado escrever sobre outra coisa, mas lembrei que estávamos na semana da consciência negra, e, que não poderia perder a oportunidade de me manifestar a respeito de um fenômeno que sob muitos aspectos ainda é considerado tabu em nosso país.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007


Amar o próximo: tarefa complicada?


Confesso que o último texto tinha uma “cara” de artigo científico, mas fazer o quê né? Quem mandou se tornar sociólogo...eu particularmente prefiro a escrita do poetas, dos literatos de uma maneira geral, por isso, nesta semana, me comprometo a prosear sobre algo mais leve, mas nem por isso menos importante do que as outras temáticas aqui discutidas. Falarei da amizade, essa forma de amor que une os seres humanos, e que segundo os gregos é uma fonte de sabedoria e felicidade. Para ser sincero, acho que falarei bem mais da forma como esse sentimento vem sendo desprezado em nossos dias, e de como vem se tornando uma espécie de troca de favores entre indivíduos, relação que só persiste enquanto um ou outro puder extrair para sí próprio o maior prazer possível. A famosa “relação pura” que é saudada por Giddens (1993) como uma grande conquista de homens e mulheres (principalmente das mulheres) no que diz respeito aos relacionamentos afetivo-amorosos, também se faz presente na construção dos vínculos sócio-afetivos. Ao torna-se uma expressão da reflexividade contemporânea, a amizade perde seu conteúdo ético, justamente aquilo que a torna um sentimento tão especial. Vivemos em um tempo onde a tradição e os valores ligados a mesma são tratados como entraves ao bom funcionamento do corpo social, tudo que lembrar dignidade, respeito, solidariedade, é percebido como romantismo demasiado, peças de museu que não mais tem espaço num mundo extremamente competitivo. A todos instantes nos fazem lembrar o quanto o próximo é um adversário em potencial. Freud em seu famoso texto “O mal estar na civilização” introduziu a idéia de que é impossível “amar o próximo como se ama a si mesmo”, afirmando que a premissa judaico-cristã nos exigia uma tarefa impossível. O distanciamento psíquico em relação ao próximo, faz com que eu o perceba como alguém não merecedor de meu amor, ou seja, quanto mais diferente de mim, menos amor poderei ofertá-lo. Além dessa condição, Freud introduziu uma outra, que torna o próximo (diferente), alguém passível de desconfiança. Dessa forma, como entregar de bandeja um bem tão precioso para alguém que só quer o meu mal? O pensamento moderno de vertente hobbesiana continua reverberando em nossa época, só que travestido com o nome de “reflexividade”. É a capacidade de fazermos uma leitura sistemática da ação de indivíduo, que faz com que eu o veja como um adversário em potencial. No mundo antigo, o sentimento da amizade era super valorizado, basta lembrarmos dos discursos imortalizados de Sócrates sobre a “impossibilidade dos maus amarem seus próximos”, ou mesmo Cícero, afirmando que “a amizade só pode existir entre homens de bem e entre aqueles dedicados a sabedoria”. Não é tôa que autores como Hannah Arendt e Emanuel Lévinas, pensadores que se dedicaram a falar do amor como condição fundamental da existência humana, estiveram engajados durante toda a vida com a constituição de um espaço verdadeiramente democrático que permitisse a produção de relações éticas pautadas por um senso de humanidade comum a todos. A reconstituição da pólis no mundo contemporâneo, torna-se dessa forma uma tarefa impossível uma vez que estamos todos contaminados com o vírus da desconfiança. Com o aumento da indiferença e a derrocada do amor, a amizade agora respira através de aparelhos. Porém existem aqueles que ainda acreditam na redenção da humanidade, na possibilidade de uma vida menos sombria, e que não se incomodam de serem reconhecidos como “românticos” e/ou “idealistas”. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman talvez seja um dos poucos pensadores vivos que ainda tentam mostrar que nem tudo está perdido, e que amar o próximo é possível, mesmo que seja como ato de fé. Eu particularmente tenho algumas críticas a Bauman, pelo fato de ele não levar em consideração as inúmeras mudanças nas relações contemporâneas que permitiram um maior equilíbrio entre os gêneros. Porém, é impossível ficar indiferente ao seu apelo desesperado por mais amor ao mundo e aos seres humanos de uma maneira geral. Bauman percebe a dificuldade amar o próximo como uma herança maldita da sociedade, uma espécie de estrutura social que age sobre os indivíduos, que os torna insensíveis e indiferentes ao sofrimento alheio. Quem dera fôssemos como Winttgenstein, capazes de se indignar com o sofrimento de um único ser humano... acabei falando muito pouco daquilo que me propus no início, talvez pelo fato de estar preocupado demais com a situação dos vínculos sócio-afetivos na contemporaneidade, talvez por achar que a amizade não pode ser traduzida em palavras...sei lá, acho que foram as duas coisas.

GIDDENS, Anthony. As transformações da intimidade. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007


You say you want a revolution? Well you know...


Com a saturação do imaginário moderno em virtude das recentes transformações políticas e culturais que marcaram o início do século XX, podemos vislumbrar o nascimento de novas formas de oposição ao poder. Diferente dos partidos políticos de esquerda, essas micro-resistências não sonham com a “tomada do poder” mediante uma revolução, e muito menos acreditam ser possível uma sociedade igualitária, transparente e livre de conflitos, como prescreve a utopia socialista. Eles fazem do cotidiano sua praça de guerra, resistindo bravamente as diferentes formas de poder que perpassam todo o tecido social. Para aqueles que continuam presos a um modelo de transformação política do século XIX, é impossível conceber formas de luta, que tenham por objetivo maior a causa do sujeito, uma vez que a idéia de singularidade é confundida com afirmação individual, ou seja, mais uma estratégia da “burguesia”. Assim, a idéia de micropolítica, que estar relacionada com a produção de afectos (no sentido Spinozano), é suplantada, por um discurso reacionário, que associa subjetividade a conformismo. Será que podemos continuar desprezando as microrebeldias pelas mesmas não possuírem uma organização semelhante a dos partidos ou um projeto de revolução centrado na conquista do poder?


“Quando o mundo é concebido através do prisma da conquista do poder, muitas das lutas, muitas das maneiras de expressão da nossa rejeição, muitas das maneiras de lutar pelos nossos sonhos de uma sociedade diferente simplesmente se “filtram”, simplesmente permanecem ocultas. Aprendemos a suprimi-las e, assim, a suprimirmos a nós mesmos” (Holloway, 2003:31).

Quando enfatizamos a dimensão micropolítica, não estamos querendo desmerecer as inúmeras lutas das organizações que buscam transformar a sociedade por intermédio do Estado, mas sim indicar, que a política em seu sentido mais amplo não pode ser concebida a partir de uma esfera apartada do sujeito. Não se trata de afirmar que os membros das instituições partidárias são seres a-desejantes, o que seria uma afirmação absurda, pois é impossível falarmos de uma colonização total dos afetos pela razão. Contudo, não podemos deixar de levar em consideração, que os discursos de poder das instituições que prescrevem ao sujeito uma única forma possível de transformação social, retira do mesmo, a capacidade de refletir sobre sua própria condição de sujeito histórico, ele não “age” sobre as estruturas de poder, mas é “agido” pelas mesmas. Quando nos remetemos a uma reconfiguração das lutas políticas na contemporaneidade enfatizando a capacidade criadora dos sujeitos, não significa dizer que estamos assistindo a uma tomada de consciência planetária dos indivíduos como jamais foi vista, mas indicar que aquela noção de revolução centrada na conquista do poder, foi (está sendo) reelaborada devido acontecimentos históricos decisivos. O fracasso das experiências socialistas na China, Alemanha e Rússia, somadas as descrenças na mudança advindas de um quadro político institucionalizado, fez com que surgissem alternativas a um modelo típico ideal de revolução. O descontentamento social se expressa em nossos dias de maneira difusa, vemos o aumento de diversos focos de contestação com preocupações que escapam os tradicionais temas das reivindicações de classe. Isso não implica dizer que a luta por uma menor desigualdade sócio-econômica entre os povos tenha perdido sua força em detrimento de outras lutas, mas sim que existem diversos grupos que se organizam dentro de outra perspectiva, que não somente aquela fornecida pela luta de classes. O desafio que hoje se impõe a esses grupos é repensar uma tática de dissolução das estruturas de poder, que não aquela construída pelo olhar do dominador. A maioria dos movimentos sociais (sejam aqueles que lutam por reconhecimento ou distribuição) continuam aprisionados em um modelo moral, onde o que está em jogo são as “verdades” do coletivo sobre a verdade do sujeito, resiste-se não porque busca-se a felicidade, uma estilística da existência (semelhante aquela apresentada pela afrodisíaca grega), mas sim porque estamos territorializados pelos discursos de poder. A luta cotidiana contra os “micro-fascismos” representa uma tentativa de construirmos uma resistência do ponto de vista do sujeito, colocando em evidência o desejo, pois só ele é revolucionário...

HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Editora Viramundo, 2003.